terça-feira, 22 de janeiro de 2013

Os Nogueira #3






Alice está há dez minutos a olhar pela janela. Lá fora está um sol brilhante e as árvores do parque em frente ao laboratório ondulam com a brisa leve que corre. Um senhor passeia o seu jornal e duas crianças correm atrás dos patos. Alice olha mas não vê nada disto. O seu olhar está voltado para o interior e para a confusão que prevê avizinhar-se.
De repente um pensamento atinge-a a alta velocidade.
– Esqueci-me de descongelar o salmão para o jantar. – É normalmente quando está concentrada que as preocupações mais mundanas a assaltam. Põe de parte esse pensamento, com a nota mental de que o jantar afinal será massa de atum, e regressa ao que a mantinha há dez minutos imóvel a olhar pela janela.
Pequenos excertos da conversa com André assomam à sua mente. – "Foi uma prateleira inteira de livros." – "O diretor da redação ficou um bocadinho preocupado." – Alice ponderava lentamente em como haveria de abordar a questão. Aquilo até tinha a sua piada. E porque foram falar com ela? Tiago não estava propriamente em idade de precisar de um puxão de orelhas e, principalmente, Alice não era, nem desejava fazer o papel de sua mãe. – "Era um manto de folhas rasgadas pelo chão." – "E no final ainda fez uma saída triunfal, batendo com a porta." – E o pior de tudo, porque é que Tiago lhe havia omitido um episódio tão importante da sua vida?
O telefone tocou, arrancando-a às suas deambulações. Era a realidade a chamar. As células que estivera a preparar na véspera estavam prontas para análise. Teria de se obrigar a descer ao laboratório se não quisesse desperdiçar as horas de trabalho gastas na preparação para este momento.
Enviou um e-mail a Tiago a dizer "Sei o que fizeste no final da semana passada.", pensando que talvez a melhor abordagem fosse através do humor. Deixou o gabinete, acolhedoramente banhado pelo sol, e dirigiu-se para o laboratório frio, no andar de baixo. Pelo caminho, obrigou-se a pôr de parte Tiago e os livros para se concentrar no trabalho que a esperava.
As horas seguintes foram passadas a olhar para um microscópio, de tal forma absorta que se esqueceu de parar para almoçar. Eram já quase três horas quando Mafalda irrompeu pelo laboratório para a arrastar até ao bar para comer uma sopa.
De regresso ao mundo macroscópico Alice pensou em pôr Mafalda a par do episódio caricato que lhe havia sido relatado de manhã, mas a amiga discursava empolgada sobre o livro que a tinha mantido acordada até tarde no dia anterior. Alice acreditava que estava a ouvir mas na realidade se lhe perguntassem sobre qualquer personagem do livro ou qualquer peripécia relatada não saberia dizer. Então novo pensamento a atingiu de repente – Tenho de tratar dos fatos de Carnaval para a Margarida e o Martim. –, provando que a sua mente estava longe daquele sítio e daquela conversa.

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